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terça-feira, agosto 05, 2008 

Teoria do vandalismo perdido

O rapaz errou quilómetros e quilómetros sem rumo pelas ruas da cidade.
Andar sem destino era como que uma espécie de ritual que embora aparentemente desprovido de qualquer significado nem por isso era menos urgente e imperioso cumprir.
Tivesse ele um programa, dominasse os arcanos de um "sistema", se ao menos fosse um pouco mais informado e alerta para a tentadora possibilidade de autojustificações egocêntricas, talvez que tivesse sido sensível à presunção corruptora de classificar essa actividade frenética e peripatética como um possível caso de "deriva psicogeográfica".
As suas deambulações não tinham como móbil "observar" detalhes, "apreciar" monumentos ou perspectivas.
Procurava sim fixar "climas", sensações, configurações.
O reflexo da luz sobre a fachada de um determinado prédio, numa determinada esquina, no momento em que uma determinada janela se abria e alguém corria para apanhar um determinado autocarro.
A sombra de uma árvore numa determinada praça no momento em que um incógnito abrira o jornal numa determinada ou indeterminada esplanada.
O tom das pernas de uma determinada mulher avistada de súbito através do vidro fumado da montra de determinada livraria quando se preparava para roubar um livro indeterminado.
Não fixava detalhes. Detalhes!
Uma determinada namorada, boa observadora e com memória visual, disse-lhe um dia, impaciente com a grosseira inexatidão com que ele descrevia os pormenores da arquitectura de um determinado edifício:
"Homem, mas afinal tu olhas para onde?"
Apenas olhava para dentro, tentava possuir, fixar o tempo. Tempo cronológico, ritmo sincopado dos passos, o tic tac do cronómetro e o do metrónomo. A repetição como paralisia, anestesiar o tempo.
Anestesiar o tempo.
Um reflexo autista de auto preservação .
E assim conseguiu ganhar ao tempo algum... espaço.
O espaço e o tempo formavam um contínuo que libertava os eventos de uma sequenciação cronológica.
Quando, mais tarde, tentava com os amigos reconstituir essa sequenciação, verificava-se que era impossível, a única viabilidade de explicação para a vivência inequívoca de diversos eventos díspares mas aparentemente simultâneos - excluindo liminarmente a hipótese absurda da ubiquidade, ou disparates românticos como a unidade do homem com o universo - era proceder a um mapeamento sistemático num espaço a duas ou três dimensões.

As distracções são fatais.
E bastou abrandar por momentos a vigilância feroz no cumprimento do ritual sem significado, bastou estabelecer os primeiros "propósitos", "objectivos", "compromissos", para que o espaço se rarefizesse e a vida realinhado na sinistra uniformidade da inexorável linha recta do tempo cronológico, miseravelmente comum.
Passado, presente, futuro.
Acabaram-se os "eventos", as "configurações".
Dia após dia, semana, após semana, ano após ano. Cada vez mais rápido e sem controle.