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segunda-feira, setembro 10, 2007 

A propriedade é o vôo

A propósito do "direito sagrado" à propriedade privada que tem posto em transe místico tudo quanto é cabecinha aqui no burgo, ocorreu-me esta historieta passada com um colega de trabalho.
O sujeito em causa tem uma casita sossegada para os lados da laboriosa, pacata, ordeira e progressiva Alverca. Ali logo pertinho da auto-estrada.
Tem, quer dizer, tinha...
Um dia destes, sem que se tivesse previamente detectado na casa actividade singular que motivasse a intervenção de cidadãos desejosos de fazer justiça pelas suas próprias mãos, do tipo móveis a arrastar de noite, portas a ranger, gente suspeita de pele esverdeada e olhos em branco babando-se abundantemente e cambaleando como zombies a entrar e a sair altas horas ou gemidos suspeitos, fizeram-se ouvir nas imediações os rugidos típicos de uma retroescavadora em fúria.
Mais terra para ali, mais terra para acolá, a retroescavadora em delírios de testosterona e diesel num ápice cavou um buraco nos limites exteriores da propriedade do rapaz.
Andavam a "nivelar" o terreno para um "empreendimento" terá dito um encarregado. Não houve invasões de propriedade, atenção.
O certo é que não foram precisos mascarados atacando pela calada com foices e martelos. Em poucos dias, os estranhos estalidos que se começaram a fazer ouvir com epicentro indefinido, materializaram-se em rachas de todo o tamanho, cabia lá tudo, até latas de spray, que em breve colocaram o outrora amável abrigo em riscos de ruína, inabitável.
As paredes comportavam-se como casais desavindos, deitavam-se uma para cada lado.
Bom, chegados aqui, pergunta o incauto:

O Pacheco bateu umas palmas e ouviu-se o conhecido trovão que anuncia a chegada do Capitão América? O blog do Pacheco agitou-se estertórico e as reverberações escarlates propagaram-se pela blogosfera fundindo caracteres em graxa preta em loas à legalidade "democrática" em blogs da esquerda à direita, aqueles numa indignação mitigada pelo secreto júbilo de por uma vez poderem "assumir" que estavam de acordo com o mestre?

Os programas de tv do Pacheco, os programas de rádio do Pacheco, as crónicas femininas do Pacheco, a fábrica de papel higiénico impresso com posts ready made do Pacheco, o País Pacheco soergueu-se?
O Vasco Graça Moura recolheu-se numa sombra e em poucos segundos abriram-se fulgurantes as asas do homem morcego?
O editorial do Expresso regurgitou caracteres compondo a denúncia do eco de um fascismo qualquer?
Um Ministro engravatado lá foi avaliar os estragos e oferecer apoio jurídico?
Não. É que infelizmente o piloto da retroescavadora não era um ambientalista qualquer em revolta, nenhum esquerdista ou contestatário, nenhum moralista totalitário arrogando-se o direito de decidir "por nós". Não consta que tenha sido visto na Festa do Avante, que tenha T-shirt do Che ou faça raids ao camarão tigre de Moçambique do Ramiro em convívio ruidoso com os delegados das FARC.
O homem, sempre a fazer pela vida, tinha um patrão, um dedicado empreiteiro, um honesto self made man daqueles que existem para ser exaltados nas crónicas mais lacrimejantes da bondosa Helena Matos.
Não havia aqui, pois, atentado, não havia excepcionalmente o dedo do Governo, demissões a exigir, dividendos políticos a extrair, estava tudo normal e ordeiro.
O rapaz que se amanhasse no pântano dos advogados, dos seguros, das vistorias da câmara, hoje falta o delegado de saúde, amanhã o primo, depois a atroz dificuldade da autarquia em emitir certidão do estado da duvidosa legalidade da licença de obra, provavelmente inexistente...
Nada disto escandaliza o País. Até porque continua tudo na mesma.
E ainda bem, já nos explica o extraordinário Miranda que a especulação é uma coisa positiva, que ao fim e ao cabo até é bem capaz de fazer prosperar as suas vítimas, é para bem delas, para conseguir tão puro desígnio, as noites de trabalho, o que sofrem os especuladores imobiliários... uns heróis, enfim...
E na realidade a justiça tem os seus caminhos, os seus pequenos heróis das grandes histórias: não é que o rapaz de Alverca se indignou mais com os mascarados de Silves do que com o empreiteiro que lhe deitou a casa abaixo?