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domingo, julho 16, 2006 

O homem que falou demais

A minha reacção inicial ao pegar no livro "Conquistadores das Almas", foi de curiosidade por focar um assunto pouco discutido, a que se seguiu um quase imediato movimento de repulsa ao ler o texto rasca de contracapa que apresenta o livro.
É revelador do momento que atravessamos e do tipo de gente que escrevinha estas bojardas que se apresente hoje em dia como ponto fulcral de um livro de um autor cuja experiência mais traumatizante parece ser a tortura pela Pide e os problemas morais engendrados pelo fraquejar perante os torcionários, como "um retrato implacável do maoismo", por mais reservas políticas, intelectuais e de mera sanidade mental que tenhamos perante o clima vivido nessas organizações.
É assombroso e revelador da hipocrisia de alguns escribas que se coloque no mesmo plano uma prisão legalizada "pro forma" por um mandato de captura mas onde o autor é brutalmente torturado, com as prisões do Copcon, por muitas críticas que estas nos mereçam.
Pensei:
" lá vamos ter outra vez o relambório do menino inocente desviado do bom caminho pelas más companhias, proferido por um arrependido qualquer".
O livro de Pinto de Sá ultrapassa felizmente esse estatuto duvidoso.
É um livro invulgar pelo doloroso que terá sido a um homem hoje casado e com filhos descer a um tão profundo e minucioso grau de descrição quer dos seus problemas íntimos quer dos detalhes da sua descida à abjecção de se passar para o lado do inimigo.
Sendo um livro útil como estudo psicológico das contradições e fragilidades de quem se encontra numa posição de submissão perante um inimigo aparentemente omnipotente, realidade escamoteada em geral pelos críticos retroactivos das actividades contra a ditadura, não deixa de ser perturbante o perfil que Pinto de Sá traça de si próprio, como um caso limite do "sindroma de Estocolmo".
Na realidade, Pinto de Sá, preso pela Pide, passa de responsável político a militante que fraqueja na polícia, situação ao que parece, vulgar, pelo menos na organização a que pertencia, e quase sem solução de continuidade a activo colaborador da Pide na prisão, prodigalizando informações quando já não se encontra em interrogatórios, e identificando-se mesmo ideologicamente com o regime.
A não ser um imbecil de um desses blogs ultraliberais obcecado em denunciar as taras "da esquerda", qualquer um percebe que quaisquer que sejam as atenuantes ou explicações que se procurem, nenhuma organização clandestina, fosse ela cristã ou maoista poderia tolerar este tipo de comportamento.
Sintomaticamente, é quando se encontra de novo preso, desta vez pelo Copcon por razões obscuras mas que poderão até prender-se com informações sensiveis que terá passado desnecessariamente à Pide e de que nem esta terá alcançado o verdadeiro significado, o que faz dele literalmente "um homem que falou demais", e que enfrenta uma possibilidade não inteiramente teórica de vir a ser fuzilado, que volta a ressurgir a sua devoção à causa comunista da sua organização.
A confissão na prisão, sob tortura, afinal coisa comum, independentemente de ser profundamente traumatizante para quem não superava essa prova, era sem dúvida algo que deveria ser combatido com dureza no contexto de uma luta clandestina .
Porém, no período de liberdade em que vivemos, felizmente, desde o 25 de Abril, é aberrante que continue a haver gente amargurada e ostracizada por esse facto.
Já não serve para nada, só por maldade mesquinha se pode conceber que essas pessoas sejam marginalizadas.
Permitir isso é, afinal, prolongar de outra forma o objectivo da Pide de "quebrar" pessoas válidas.
Assumir esse passado e romper com esse cerco é quanto a mim a grande virtude do livro de Pinto de Sá.

Certamente por engano, o comentário com que o autor de "Conquistadores de Almas", prestigiou os meus dois posts sobre o livro, foi feito no espaço de comentários do post "Atrás de mim virá quem bom de mim fará" acima.
Quem estiver interessado em ler já sabe onde deve ir.

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