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sábado, fevereiro 24, 2007 

Dor de corno

Como é saudável, vários blogs de direita reagiram com diversos graus de acrimónia à comemoração de uma efeméride qualquer sobre o Zeca Afonso.
Variaram desde a piadola inócua à denúncia quixotesca (no sentido mais lunático) da “idolatração do totalitarismo, passando pela crítica política embora reconhecendo mérito estético ao cantor de intervenção.
A razão pela qual muita gente ainda admira o Zeca Afonso, tem pouco a ver com o facto de os meios de comunicação serem ou não dominados pela “esquerda”, nem com o partido de quem ele esteve próximo, ou sequer com a sua “ideologia”.
Independentemente dos seus méritos artísticos e da expressão musical tão ligada ao “ar do tempo”, Zeca representou para uma geração o “modelo” de oposicionista pragmático em busca da “unidade” fora do aparelho, que apesar de nada ter de super-homem, apesar das dificuldades materiais, das dificuldades de visão, apesar das suas fobias, estava sempre disposto a deslocar-se para actuar, mesmo sob a ameaça física dos esbirros da ditadura (parece lugar comum, e quase calúnia para os “liberais”, mas existiam efectivamente esbirros da ditadura), lá onde havia gente que resistia e a quem a sua música dava alento. Simpatizante de uma causa pela qual militava de uma forma que pouco tinha a ver com a imagem tradicional do resistente e se fundiu no imaginário colectivo, em parte por equívoco, com outros modelos comportamentais que despontaram nos anos sessenta com a explosão da influência da música e dos media anglo-americanos.
Enquanto os burocratas de um regime asfixiante hoje idolatrados como "democratas" por alguns revisionistas liberais se acomodavam ao regime nas suas vidinhas relativamente confortáveis, o “idealista” procurava o apoio fraterno (outra palavra do politicamente correcto) das pessoas reais que passavam fome e miséria. E isso, pasme-se, era bem visto naquela época. E, pior, deixou memória...
Para além disso, mesmo esteticamente, a esmagadora maioria das alternativas da época ligadas ao regime ou por ele toleradas, eram de uma pimbalhice também ela asfixiante.
Hoje, apesar do tom catastrofista de estertores do Juizo Final com que alguns à esquerda e à direita descrevem o nosso País, e apesar da necessidade de intervenção cívica por maior liberdade política e económica e pela melhoria das condições de vida das pessoas, dificilmente haveria lugar para um José Afonso.
Pelo contrário, parece-me até grotesco e um erro político um certo espírito meio religioso meio ultra-nostálgico com que alguns manifestam uma saudade atroz pela inexistência de um seu equivalente na actualidade.
Zeca é uma referência quase utópica, tanto mais fácil de reconhecer para alguns quanto já não está entre nós a tomar posições políticas e a tomar partido.
Os direitistas indignados ou ressaibiados com estas manifestações de apreço poderiam tentar perceber que as pessoas apreciam anti-heróis assim, homens comuns com suficiente dose de coragem para viver uma vida material difícil, para desprezar a “obrigação de procurar a sua felicidade”. Pessoas idealistas.
E o problema é que por maior que seja a maré de verborreia imbecil que produzam sobre o “totalitarismo” a propósito do Zeca Afonso e outros, quem exercia a ditadura e estava mais próximo do totalitarismo em Portugal antes do 25 de Abril era a direita, e ingénuos ou não, era à esquerda que viviam os idealistas preocupados com a liberdade.