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domingo, setembro 04, 2011 

Estações

As transformações em curso no Médio Oriente, vulgarmente designadas como "Primavera Árabe", tinham forçosamente de ter impacto em Israel.
O que começou como um protesto "de baixo nível" político contra a dificuldade de arranjar habitação, parece assumir agora um carácter mais abrangente e progressista.
O impacto não é o previsto pelas várias leituras conservadoras aparentemente contraditórias da presente situação no mundo árabe, de que destaco:
- Os regimes árabes até aqui "amigos", vão tornar-se em regimes islâmicos agressivos, à semelhança do Irão de Khomeini;
- Os regimes árabes que resultarão das revoltas vão tornar-se "democracias" no sentido de regimes dóceis tutelados ideológica, cultural e militarmente pelo Ocidente, dominados por elites "ocidentalizadas" indiferentes à sorte das massas oprimidas, tal como no Irão do Xá, o modelo passadista que inspirava a "teoria do dominó" que sustentou a invasão do Iraque.
Ambas estas leituras concorrem na necessidade de reforçar o papel de Israel como pretenso baluarte civilizacional e vindicar o seu aberrante carácter racista.
Numa região tão vasta, é natural que as consequências da Primavera árabe sejam diversas, mas o inegável significado geral deste sobressalto, é que as massas árabes já não compram mais uma visão do mundo maniqueísta de que foram durante décadas vítimas privilegiadas.
As massas árabes já não compram a manutenção de regimes profundamente corruptos em nome de uma hipócrita e falsa posição de "não-alinhamento", conceito vago que apenas já servia de consolo a alguma esquerda europeia profundamente reaccionária, impotente para travar a real demolição das sociais democracias europeias (regimes que alguns desprezam furiosamente mas de que foram os principais beneficiários e cujo desmantelamento - em que colaboram com brio - os afectará profundamente), mas julgando, numa ilusão de contornos esquizofrénicos, ter alguma coisa a dizer sobre a vida dos árabes e da correcção das suas revoltas cívicas.
Tal como nos países do sul da Europa vivendo sob ditaduras nos idos anos sessenta e setenta, tal como nos países da Europa de Leste vivendo sob ditaduras até ao final dos anos 80 do século passado, as massas árabes querem apenas democracia e liberdade.
As conspirações, reais ou imaginárias, e dentre estas as mais ou menos delirantes, estarão, sem dúvida presentes, mas o verdadeiro motor, impossível de pôr em marcha por qualquer maquinação do "Grupo Bilderberg" ou da CIA, é o entusiasmo idealista de grandes camadas da população por novas ideias.
Que o elemento religioso está presente? Sem dúvida! Mas alguém imaginaria que pudesse não estar?
Mas não andaram alguns ( e eu incluo-me nesse grupo) a dizer que a religiosidade islâmica não se esgotava, nem podia ser, sequer, representada, pelo delírio assassino da AlQaeda, tal como pretendiam os criminosos da seita do Bush?
Alguém pode renegar o papel dos grupos de cristãos católicos na oposição ao regime anterior ao 25 de Abril?
Como é que agora se pretende pôr em causa a revolta árabe por muitos dos seus participantes serem religiosos e a religião vir a desempenhar inevitavelmente, segundo modelos adaptados àquele contexto, um papel idêntico ao que desempenha nos países europeus, com maior ou menor controvérsia mas sem que isso tenha impedido o estabelecimento de democracias?
A emergência de massas actuantes e com elevada consciência cívica na rua árabe, pressionando processos de democratização, ainda que mais ou menos titubeantes, cria inevitavelmente um novo cenário nas relações entre Israel e os seus vizinhos.
Em primeiro lugar, democracias árabes, embora potencialmente menos belicosas ao nível dos estados, desmantelam o mito da superior legitimidade moral israelita e, por definição, não pressupõem, antes pelo contrário, uma "pacificação" das relações com Israel e uma normalização da ocupação da Palestina e sua submissão a um regime de apartheid.
Em segundo lugar, essa emergência evidencia o logro em que vive a esmagadora maioria da sociedade israelita, refém do permanente estado de sítio em que a mantém de uma casta racista ultradireitista, militarista e fundamentalista religiosa.
É claro que é ainda muito cedo para se saber o que resultará do "Outono judaico" que começa a despontar.
A casta no Poder pode ser tentada a usar de forma mais ou menos subtil o formidável aparelho militar e sobretudo de espionagem do Estado de Israel, que controla, para quebrar a revolta já em curso.
Pode até invocar, tal como o seu vizinho sírio, o superior interesse nacional e a sobrevivência do estado, para desencadear uma acção mais musculada sobre a sua própria população, ou lançar mão do recurso habitual das ditaduras para reforçar os laços "patrióticos", na forma de provocações sobre os seus vizinhos.
E pode ainda, graças aos enormes recursos financeiros que controla directa ou indirectamente, tentar afogar a revolta em dinheiro à custa do contribuinte americano.
Porém, por paradoxal que pareça, dada a tendência contemporânea para o recrudescimento da conflitualidade, talvez seja este o início de um verdadeiro caminho para a Paz no Médio Oriente.

"...as massas árabes já não compram mais uma visão do mundo maniqueísta de que foram durante décadas vítimas privilegiadas"
Espero que não.
Mas aguardo para ver a forma como as minorias religiosas serão tratadas após estas transformações políticas.

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