Encruzilhada
Arrasta-se a guerra civil na Líbia.
É um caso que resume uma série de problemas e dilemas do mundo actual.
Em primeiro lugar há que notar que a revolta líbia surgiu no contexto de uma tomada de consciência da rua árabe de décadas de opressão e miséria em nome de utopias diversas concretizadas pelo domínio quase irrestrito de oligarquias ferozes e cleptocráticas.
Tal constatação sobrepõe-se, no caso da Líbia, à presença de um ditador suficientemente enérgico e disposto a tudo para se defender, incluindo o recurso à utilização do seu arsenal militar contra o seu povo, à persistência das formas tradicionais de identificação social e política como as tribos e os clãs, e à ausência de uma vanguarda organizada por parte dos revoltosos.
O último aspecto parece-me determinante: morto o marxismo e relativamente secundarizado o militantismo islâmico pela dinâmica imparável da sociedade num mundo globalizado, a revolta mais ou menos espontânea da população, sobretudo urbana, não teve até agora capacidade para se organizar de forma política e militarmente eficaz.
Se por um lado essa incapacidade teve o mérito de suscitar as simpatias que determinaram o desencadear de uma intervenção internacional em seu socorro, por outro lado impede a resolução do impasse na evolução da situação militar.
A lição a tirar é que sem a emergência de um poder centralizado minimamente legitimado, quanto mais não seja pelo seu sucesso militar, a revolta líbia está condenada ao fracasso. E ainda que vitoriosa, terá de enfrentar o dilema: como evitar tornar-se na ditadura no lugar da ditadura?
Este, o problema dos líbios.
Quanto aos outros, são inúmeras as leituras:
Em primeiro lugar a permanência das limitações da ingerência político militar .
Isto é, a comunidade internacional continua incapaz de uma resposta eficaz a acontecimentos como os de Serebrenica, do Ruanda, Darfur, Congo e tantos outros.
Não é contributo dispiciendo para esta incapacidade, e esta crise foi nesse aspecto paradigmática, o facto de os mesmos que ontem denunciaram numa retórica inflamada a "passividade" ou mesmo cumplicidade do Ocidente para com os abusos, hoje denunciarem a "ingerência" na mesma retórica inflamada.
Apesar de uma preocupação de equilíbrio, o editorial de Serge Halimi no Le Monde Diplomatique é um caso flagrante destas limitações: caracteriza o Kadhaffi, reconhece a revolta e o apelo feito para evitar o seu afogamento num banho de sangue, mas considera a intervenção como um factor adicional de desestabilização.
Isto é paradoxal. O que é que há de "previsível" em toda a situação que se vive no Médio Oriente? Será preferível a anterior "previsibilidade"?
A mim pouco me interessam nesta situação as complicadas aritméticas que fundamentaram a rápida coalescência de americanos franceses e ingleses no sentido de intervirem rapidamente no terreno após uma decisão das Nações Unidas.
Interessa-me que do ponto de vista dos revoltosos, conseguiu-se evitar, para já, o desastre, embora a situação permaneça difícil.
A decisão de americanos, franceses e ingleses, por mais reservas que se tenham quanto à natureza dos seus interesses, expôs e liquidou a hipocrisia de uma certa esquerda que se auto-erige como campeã dos problemas do povo mas que prefere esperar até que o povo seja liquidado para então fazer prova da sua inatacável boa consciência ao longo de todo o processo:
- São os primeiros a denunciar os abusos e a manifestar a incondicional solidariedade para com os revoltosos;
- São os primeiros a denunciar as hesitações, a "real politik" feita de compromissos aberrantes, as "cumplicidades" e a "passividade";
- Se levados a sério e a intervenção tem lugar, são os primeiros a denunciá-la como "ingerência" e "hipócrita";
- Se não forem levados a sério e aderrota for esmagada serão os primeiros a celebrar as vítimas e acusar a "cobardia" criminosa dos que se abstiveram de intervir.
Esta esquerda moralista, na realidade profundamente hipócrita, não interessa politicamente.
A situação é de tal forma grotesca que assistimos de um lado aos neocons americanos a acusarem Obama porque a campanha foi mal preparada e está a levar muito tempo, acolitados por personagens do calibre de Aznar indignado com a falta de clareza dos objectivos e o ataque a um "amigo excêntrico", do outro à esquerda europeia embrenhada em cogitações idiotas, alinhada com a corrupta Liga Árabe preocupada antes de mais com o facto de a NATO atacar "alguém", e os rebeldes líbios (que são os únicos a levarem com as bombas do Kadhaffi em cima...) a acusarem a coligação de "ineficácia" e "lentidão".