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domingo, fevereiro 05, 2006 

Aventuras do Joe Delgado

O que irrita no livro Portugal Livre não é o facto de um rapaz americano aterrar em portugal e num livrinho de 80 páginas reescrever a história de portugal dos últimos cinquenta anos.
O que irrita é a retórica moralista que o acompanha a fazer lembrar a habitual introdução ao tema "o estado do mundo" feita pelas diligentes equipes ambulantes das Testemunhas de Jeová..
O livro tem a forma de um diálogo e a sua génese descreve-se em poucas palavras:
rapaz americano licenciado em história e neto de português relembra uma aventura do avô num obscuro golpe militar falhado ocorrido há mais de cinquenta anos num país obscuro.
O neto aterra em Portugal, faz alguns contactos e constrói uma versão dos factos.
Como seria de esperar nestas histórias infantis, aqueles revelam-se completamente diferentes dos apresentados nas versões oficiais. Diferentes é como quem diz, revelam-se pura e simplesmente o oposto da versão oficial. E também, por simples coincidência, na linha da perpectiva do avô do neto.

Não se limitando porém a esse feito já de si prodigioso, o autor debita uma série de inanidades de sabor mais ou menos moralista sobre os "enganos" em que o povo tem vivido sobre o 25 de Abril.
O povo anda enganado... iludido, as coisas não se passaram como o povo pensa... o costume.
“(...) E vocês são demasiado ignorantes para se aperceberem de que alguém tira proveito disso, tudo porque vocês não sabem quem foi o general Delgado (1)”.
Ele acha que antes dele ninguém sabe quem foi o General Delgado...ok...pouco modesto, o Weil.
Acha também que o povo português "pactuou" com o regime salazarista porque teve medo e se acomodou. Aí valente... dez como ele e nem o Salazar tinha feito a Constituição de 1933, não tinha chegado lá... mas de repente porém, ergueu-se da multidão apática, a figura de Delgado.
“(...) Basicamente, (basicamente é óptimo...) Delgado fez com que as pessoas perdessem o medo de ser intimidadas, presas ou mortas pelo regime. Após a sua morte, aquilo a que os historiadores chamam “o efeito Delgado” acabou por se dissipar e as pessoas tornaram-se novamente dóceis. Daqui se conclui que o espírito revolucionário dos portugueses era mais elevado no final dos anos cinquenta e no princípio dos anos sessenta do que antes do 25 de Abril”.
"Daqui se conclui...", este rapaz a concluir coisas é uma máquina.
Delgado galvanizou a multidão, o regime estava prestes a cair e isso só não aconteceu porque a oposição ao salazarismo traiu Delgado.
Tinha de ser... há sempre uma ovelha ranhosa a estragar uma história tão linda.
A visão estratégica das contradições que dilaceravam a oposição portuguesa à data do golpe de Beja é tão néscia que até dói.
(...) O Dr. [Mário] Soares e outros recusaram-se a apoiar Delgado porque não queriam desempenhar um papel secundário. Não há nenhuma outra razão para a sua recusa em apoiá-lo. Na altura do Golpe de Beja o regime de Salazar estava susceptível de ser derrubado. O Golpe de Beja fracassou não devido à resistência da ditadura, mas por causa de divergências com Delgado no seio da oposição”.
Os "outros" que ele não nomeia neste parágrafo mas é sugerido abundantemente no livro são os comunistas.
Tentando sumarizar (basicamente, como diria o Joe), a questão põe-se assim:
O General Delgado, anti-comunista convicto, prepara um golpe militar. Apesar de Delgado e o povo e o povo (agora sem medo) e Delgado serem praticamente unha com carne, a única estrutura organizada com capacidade para pôr o golpe em prática é o Partido Comunista.
O golpe avança mas existe alguma descoordenação – talvez mesmo antagonismo entre Delgado e os restantes oposicionistas. Mas Delgado – ou Weil por Delgado, o que neste caso vem dar quase ao mesmo, pensaria verdadeiramente que os comunistas e restantes oposicionistas de esquerda dariam o coiro num golpe de que emergeria como herói um anti-salazarista mas também anti-comunista?
Delgado quereria dar um golpe, na versão Weiliana, entre outras razões para impedir a ascenção do comunismo que lhe parecia inevitável nas condições vigentes à época, mas conta para isso com a colaboração dos comunistas. Numa altura em que se vivia já em plena "guerra fria". Por outro lado os comunistas entram num golpe que sabem que no fundo é dirigido contra eles como praticamente unicos executantes e para o boicotarem... sendo de caminho alvejados e aprisionados... não estamos ainda na tese do assassinato de Delgado pelos comunas cara a Salazar, mas também não andamos lá muito longe.
É das tais contradições... por um lado atribuem aos comunistas poderes maléficos, por outro... acham-nos idiotas.

O que é certo é que o golpe falha e Delgado passa à margem do golpe. Alguns dos protagonistas falam em "traição"... mas ninguém apresenta provas concretas. O General é "traído" mas consegue escapar, enquanto os "traidores" são alvejados e presos .
O povo português ( é sintomática esta forma "romântica" de explicar a história, é Delgado e "o povo", o resto é paisagem) que estava desperto por Delgado que até tinha feito "com que as pessoas perdessem o medo de ser intimidadas, presas ou mortas pelo regime", fica estranhamente inactivo, e um golpe que era "fácil", desfez-se em poeira.

Não havendo vacas sagradas, é natural que quer o Joe ou outro curioso qualquer investiguem os factos, é com certeza útil para o nosso conhecimento da história recente de Portugal que este e outros casos sejam melhor investigados, mas pelo amor de Deus apresentem argumentações coerentes, e abstenham-se de moralismos patetas do género :
Estás convencido de que o governo deste país é legítimo quando não o é. Ocultam-te as verdadeiras origens do teu governo”.
O que é que isto tem a ver com o caso Delgado?

(1) Teorias da conspiração há muitas e para todos os gostos

Nota: As citações do livro Portugal Livre de Joe Weil, foram tiradas do blog Para mim tanto faz

Did you actually read this book, or are your conclusions only based off of the quotes from the blog you quoted?

Obrigado pelo comentário.
O livro lê-se em meia hora. Li-o de pé na Bertrand do Chiado. Tem cerca de 80 páginas de linhas espaçadas e está impresso num tipo de letra muito maior do que o deste blog. Na realidade lê-se como um longo post.
Ainda por cima é escrito numa linguagem que denota uma preocupação didática idêntica à da série de divulgação de clássicos
explicados "às crianças e ao povo".
Só lhe faltam as ilustrações.
Um tom muito irritante para este tipo de tema.
As passagens que Frederico Carvalho escolheu certamente por pensar serem as mais interessantes do seu ponto de vista de "teórico da conspiração" publicado e consagrado, coincidiram felizmente com algumas que eu achei ilustrativas da vacuidade das "teses" (ou pelo menos da forma como são apresentadas) e o tom insuportavelmente paternalista do livro.
Posteriormente ( mas antes de escrever o post) visitei o site do Joe e vi os excertos disponibilizados de entrevistas com alguns protagonistas do golpe, e fiquei admirado porque são completamente inconclusivos (é pena o joe já não ir a tempo de entrevistar o falecido coronel Varela Gomes, o "traidor" que foi ferido e aprisionado no golpe). Se quisermos ser "equilibrados" direi apenas que já depois de ter escrito o post, li algures que Mário Soares cobrou pela sua entrevista, o que eu acho uma atitude muito infeliz.

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