Falso alarme
Alertado por uma amiga ( penso que ela não se zanga por tratá-la assim), fui ler um post do briteiros que lhe chamou a atenção.
É sobre uma cadeia inglesa de supermercados que deu aos seus empregados muçulmanos a opção de não tocar em embalagens de produtos alcoólicos ou atender clientes que os queiram comprar.
Aparentemente tratar-se-ia de um precedente perigoso e uma brecha na defesa que um Ocidente supostamente acossado tem de fazer dos seus valores.
Não me parece que haja motivo para tanta preocupação.
A empresa pode ter encomendado estudos de mercado que concluiram ser esta a posição que lhe traz vantagens comerciais ou junto do universo dos potenciais empregados, ou do seu mercado preferencial, ou "alvo", como se lhe queira chamar.
Como muita gente tem defendido recentemente, a propriedade é um "direito sagrado" e sendo sagrado e sendo a companhia privada, tanto tem direito em permitir uma opção idiota aos empregados (não lhes impondo nada de forma coerciva) como pode não contemplá-la.
É uma mera opção: certas cadeias de supermercados como a Walmart, proibem (excepto, ao que parece, na China) que os seus trabalhadores se sindicalizem ( em nome da liberdade de não se sindicalizarem, não é lindo?). Alguém se preocupou por esta prática violar normas e valores que alguns consideramos fundamentais na nossa democracia? Alguém se choca com o sinal da nova invasão de bárbaros obscurantistas que na realidade isto é?
Os administradores de determinadas companhias ( nalguns casos até públicas...) não têm direito a mordomias várias que levam o senso comum a descrevê-las sintomaticamente como exemplos de "luxo asiático"? Alguém (a começar por esses administradores) já se revoltou contra a hipotética subversão dos valores civilizacionais contida nessas práticas, ainda por cima, "asiáticas"?
Então em que medida é que nos escandalizamos com o facto de uma empresa privada mimar os seus empregados? Só se for porque viola a norma cada vez mais comum de as empresas privadas retirarem direitos aos seus empregados. Onde é que estão aqui os "valores"?
Recentemente, num almoço de família, apercebi-me duma situação que ajuda a perspectivar este tipo de relações entre as empresas, os seus empregados e os "valores civilizacionais":
A minha irmã, médica ginecologista, "objectora de consciência" num Hospital privado que permite a prática do IGV tal como consagrada na Lei depois do último referendo sobre o assunto, acha mal que o referido Hospital publicite a sua adesão à referida prática sem revelar a existência dos tais "objectores" (que, enquanto tal, não são obrigados a praticar nada que não queiram fazer).
Já o meu cunhado, também médico embora não ginecologista, tem uma posição mais flexível sobre a matéria, mas trabalha num outro Hospital privado cuja administração proibiu a realização de IGV nas suas instalações.
Sendo ambos hospitais privados, podem dar-se ao luxo de proibir ou aceitar nas suas instalações o que lhes der na gana, em toda a normalidade, pecando apenas o último por coagir os seus empregados a não praticarem determinados actos médicos permitidos pela Lei.
Suspeito que neste último caso as razões que levam a administração a proibir o IGV são, embora diferentes na aparência, análogas e da mesma ordem de valor civilizacional do que as que levam o empregado muçulmano a exercer a sua "opção", embora nitidamente inferiores às que sustentam a medida adoptada pelo Supermercado inglês. Digo que são razões da mesma ordem porque as tretas sobre o "julgamento de Hipócrates" acabam quando chega a hora da triagem e o "doente/cliente" tem o cartão de crédito ou do seguro a seco.
Quando lhe referi isto, a minha irmã (não gosto menos dela por isto, claro), fundamentalista quanto à sacralidade do julgamento de Hipócrates quando se trata de não praticar o IGV, esclareceu-me em tom maternal ( seria mais correcto fraternal, mas...), que temos de nos adaptar ao que chamou as realidades da sociedade contemporânea.
Claro que sim. Estamos todos a adaptar-nos.
Conclusão: tudo como dantes, não há motivos para alarme.