Os culpados são as bítimas
Desde que foi conhecida a sentença do caso Casa Pia que se têm verificado uma série de desenvolvimentos que para o espectador comum, como eu, são motivo de perplexidade.
No período de vários anos que decorreu desde o aparecimento do caso na imprensa com grandes parangonas, até à saída da sentença, sempre achei que o melhor comentário era o silêncio, confiando que se fizesse justiça pelos meios próprios.
Questionei na devida altura, em conversas com amigos ou em circulos restritos da blogosfera, determinados factos, como a divulgação pela imprensa de conversas telefónicas particulares supostamente em segredo de justiça, como foi o caso do Ferro Rodrigues e outros. Já nessa altura a táctica usada para queimar Ferro Rodrigues foi a táctica agora usada com Sócrates: a divulgação em doses calculadas e devidamente temporizadas de factos parcelares com o intuito de manter a chama da calúnia bem acesa por períodos de prolongado desgaste e proceder em lume brando a um descarado assassinato de carácter.
Como a táctica funcionou com Ferro perante o silêncio cheio de hipócrita pudícia da maioria de então e a indiferença habitual da "esquerda" mais à "esquerda", tentou-se repeti-la com Sócrates tendo desta vez partido os dentes numa forte oposição, quer do Primeiro Ministro, quer da opinião pública, apesar do desespero da Direita, com incidência particular no PSD, e da "esquerda" do Bloco e do PC que viu nessa aparentemente espúria aliança com o PSD a oportunidade para derrubar o "inimigo principal", o Primeiro Ministro "neoliberal" e quiçá criar as condições para a insurreição das massas corporizadas na pequena multidão de doentes que enxameia os blogs e as caixas de comentários de alguns media.
A situação criada pela sentença em primeira instância do julgamento Casa Pia, lança em primeiro lugar a dúvida para que serve uma sentença de primeira instância.
Com efeito trata-se dum pro-forma sem qualquer efeito prático aparente que não seja, como o foi neste caso, o lançamento de uma campanha de condicionamento da opinião pública por parte dos condenados e dos seus advogados.
Se a falta de pudor, se o descaramento arrogante dos condenados num caso tão grave, marcam esta sentença, a questão do efeito prático da primeira instância coloca-se ainda por duas ordens de razões:
Em primeiro lugar, a frequência com que as instâncias superiores revertem, anulam, alteram as decisões de primeira instância sem que ninguém seja responsabilizado.
Em segundo lugar porque a falta de quaisquer condicionantes, simbólicos que sejam, para os condenados, abre o caminho ao deboche a que assistimos nos últimos dias:
Ao invés de ser imediatamente aplicada a sentença, ou no mínimo que fossem estabelecidas determinadas medidas de coacção no decurso do inevitável recurso (potenciado pela frequência como as sentenças são revertidas...), assistimos ao espectáculo grotesco dos condenados por pedofilia a sairem à rua, dando entrevistas, proclamando alto e bom som a sua inocência e a "nulidade" das sentenças, publicando livros, comparecendo em programas informativos e talk shows de grande audiência, tornando literal o novo princípio de que "o culpado é a vítima" e procedendo a autênticos julgamentos em praça pública dos juízes que os julgaram, com o argumento senil de que reporem uma espécie de verdade, a verdade que não conseguiram provar em tribunal, é um imperativo que lhes assiste porque as sentenças que os condenaram resultaram de ... pressões da rua.
Condenar uns indivíduos, portanto, é apenas dar-lhes um pretexto para insultarem os tribunais e os juízes sem qualquer receio de represálias.
Mas até aqui ainda sobrevivemos. Sobrevivemos à falta de escrúpulos e baixeza dos condenados dispostos a tudo para se safarem sem olharem a meios, que chega ao ponto de um deles, aquele que tem beneficiado duma inequívoca simpatia dos media a cujo acesso tem beneficiado amplamente, ter criado um website onde divulga os nomes de 200 pessoas que serão referidas no processo.
Onde sentimos o vexame é quando realizamos que não há, aparentemente, mecanismos legais, legítimos, para pôr ordem nisto.
Tudo isto é intolerável. Aceitar-se este estado de coisas e comportamentos, de condenados e meios de comunicação que lhes dão guarida é aceitarmos que a justiça não faz sentido, não fazem sentido os tribunais, não fazem sentido os julgamentos, é a lei do que berra mais alto, a lei do mais forte.
Infelizmente esta gente tem alguma razão. O facto de ninguém ou nada se opôr a isto com força e convicção é disto prova. Até as vítimas! se predispõem, em troca de uns momentos mediáticos, a participar num asco como foi o Prós e Contras de ontem.
Há gente disposta a jurar pela Mãezinha que Portugal é o país mais corrupto do Mundo, o mais desigual, o mais atrasado, e que paradoxalmente acha que isto tem a ver com "liberdade".
Se é Liberdade, só pode ser útil porque demonstra como com ela em mente chegámos ao beco sem saída a que chegámos no que respeita à administração da Justiça.
Há que reajir contra a esquizofrenia das duas tendências maioritárias existentes hoje em Portugal quanto à Justiça: os ansiosos por autoridade e "dureza" a qualquer preço, e aqueles que com o trauma das arbitrariedades do anterior regime se insurgem contra o exercício de qualquer autoridade pública, por muito legítima que seja, e que sustentam ideologicamente um sistema jurídico onde é praticamente impossível obter uma condenação e fazê-la cumprir.
A continuar assim, a justiça, acabrunhada pelo peso de uma legislação interminável e contraditória e sem qualquer relação com a realidade, conduzindo amíude a sentenças ofensivas da inteligência e da sensibilidade, arrisca-se a tornar-se irrelevante, desnecessária, perniciosa, e a abrir caminho para a vendetta e a lei do mais forte.
Para já, a única contribuição que me resta fazer aos condenados do caso Casa Pia e seus advogados é:
Silêncio, por favor. Pudor. Aguardem os recursos, defendam-se nos forae adequados mas poupem-nos ao espectáculo degradante dos últimos dias.
Completamente de acordo no essencial: a eventual justeza dos fins não justifica o uso de quaisquer meios. Conviremos contudo que os actuais condenados já o tinham sido muito antes da sentença desta primeira instância. E que os acusadores já eram vitimas, inclusivamente indemenizadas por todos nós, antes mesmo do reconhecimento do colectivo.
Problema da justiça ? Não iria por aí ! É a sociedade que temos, apenas isso.
Saudações
Manuel Rocha
Posted by Manuel Rocha | 10:30 da tarde