Porque o considero um texto muito importante para a discussão do Manifesto "
The Empire Strikes Back", transcrevo o artigo de
António Costa Silva, presidente da Comissão Executiva da
Partex Oil and Gas e Professor do Técnico, publicado Sábado, 15 de Abril, no caderno de Economia do
Expresso.
Como não encontrei uma versão on line do artigo, recorri a uma digitalização do jornal feita com um programa de OCR, que depois editei, pelo que quaisquer erros de transcrição são da minha exclusiva responsabilidade.
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Manifesto: O tempo não volta atrás
O manifesto de 36 cidadãos a exigir um debate público sobre a politica energética e "uma avaliação técnica e económica independente e credível de forma a ter em conta as alternativas disponíveis com o objectivo de reduzir os preços da energia” é uma iniciativa positiva porque a energia é um assunto demasiado sério para ser deixado apenas nas mãos dos políticos.
No entanto, à medida que se lê, a decepção começa a apoderar-se de nós. O Manifesto revela falta de rigor, falta de perspectiva na análise, exibe um preconceito irracional contra as energias renováveis, não aponta alternativas e ignora que hoje não se podem discutir as questões energéticas sem analisar a segurança do abastecimento, os efeitos ambientais e os compromissos assumidos para a redução das emissões de CO2.
Mas vamos por partes.
1. Falta de rigor.
O Manifesto diz: "Para ilustrar a incapacidade da actual política para reduzir a nossa dependência energética, bastar referir que em 2008, último ano de que existem dados publicados pela DGEG, o saldo líquido da factura energética portuguesa atingiu o valor de €8.219 milhões, ao passo que em 1998 não ultrapassava €1.464 milhões".
Os autores esquecem-se de dizer que o principal efeito que há aqui é o do preço do petróleo, pois em 1998 o barril estava a 10 dólares e o preço médio em 2008 foi de 103 dólares por barril, 10 vezes mais. Esse é o principal factor que explica o aumento exponencial da factura energética, que 75% do seu valor tem a ver com a importação de petróleo. E, ao contrário do que dizem os autores, os volumes importados têm vindo a decrescer. No caso do petróleo, Portugal importou 322.000 barris por dia em 1998 e 286.000 em 2008, sendo que desde 2002 se assiste a uma tendência clara de declínio. O argumento pode virar-se contra os autores: será que este declínio prova que a aposta em energias renováveis está a contribuir para atenuar a dependência energética do exterior?
2. Falta de enquadramento.
O Manifesto diz: "A actual política energética tem vindo a ser dominada por decisões que se traduzem pela promoção sistemática de formas de energia 'politicamente correctas', como a eólica e a fotovoltaica, mas que apenas sobrevivem graças a imposicões de carácter administrativo que garantem a venda de toda a produção à rede electrica a preços injustificadamente elevados". Não há formas de energia ‘politicamente correctas'. Há, sim, formas de energia que existem no país, são mais seguras do ponto de vista do abastecimento e podem e devem ser aproveitadas para diminuir a dependência do exterior, para construir uma indústria nacional de base tecnológica, para criar emprego e para reduzir as emissões de CO2 melhorando o ambiente.
Concordo com os autores quando dizem: "A subsidiação do sobrecusto das renováveis não pode constituir uma prática permanente". Há coisas que com certeza podem ser optimizadas mas não deitemos fora o bébé com a água do banho: as energias renováveis podem e devem ser uma aposta estratégica porque são recursos endógenos tendo alguns condições para serem competitivos. Se não, temos de perguntar: quais são as alternativas?
Carvão que tem de ser importado e é altamente poluente?
O nuclear que deve ser debatido mas suscita interrogações devido aos custos envolvidos e gestão dos resíduos?
Faz sentido abdicar de recursos próprios que têm percorrido o seu caminho de afirmação e que no caso da energia eólica é hoje já muito competitiva, para voltarmos atrás, destruirmos o cluster da industria nacional criada, provocarmos mais desemprego, abdicarmos da endogeneização das tecnologias entretanto feita e passar a importar mais carvão ou importar a tecnologia nuclear com todos os custos associados?
E há outro factor: o Manifesto só discute a electricidade que representa apenas 25% da matriz energética portuguesa. E os transportes que são de facto o problema mais sério e profundo?
3. O preconceito contra as energias renováveis
Está patente ao longo do Manifesto e daí poder-se-ia concluir que a aposta feita em Portugal nas energias renováveis seria um erro tremendo.
Não é: em 2008 a capacidade instalada de energia eólica no mundo cresceu 30% só nos EUA cresceu 50% e países como a Alemanha, Espanha e China estão na linha da frente. No caso da energia solar em 2008 cresceu 69% com paises como a Alemanha, Espanha, Japão e EUA na linha da frente. Os investimentos em energias renováveis mais do que duplicaram entre 2004 e 2006, antes da crise, representando cerca de 10% dos investimentos globais em energia. Nunca tinha acontecido antes e isto mostra que algo mudou. 0 que se passa é que de facto esta aposta aparece no quadro de um novo paradigma energético que procura diminuir a dependência dos combustíveis fósseis aglutinando quatro tendências essenciais:
- maior electrificação do sistema energético (até 2030 o crescimento do consumo de electricidade vai ser o dobro do do petróleo);
- a descarbonizaçao com redução das emissões de CO2 (e por isso a geração eléctrica e térmica com base nas renováveis faz todo o sentido);
- a localização com a descentralização da produção e
- a optimização com base nas redes inteligentes (smart grids).
4. Visao estatica da tecnologia
O Manifesto diz: “a natureza intermitente e incontrolável das energias eólica e foto-voltaica torna-as incapazes de satisfazer não só a totalidade do consumo, como a potência necessária em determinadas horas do dia e épocas do ano, o que exige que se continue a dispor de centros produtores controláveis de substituição e a recorrer com frequência a importações de Espanha".
Sejamos claros: são os preços e a tecnologia que vão dirigir a transição energética e por isso a preocupação dos autores com os preços é importante. Mas não podemos hoje ignorar que as escolhas políticas e sociais são críticas e por isso eu prefiro que essas escolhas sejam feitas na base do novo modelo energético que vai emergir, descentralizado e mais sustentável, do que na base do modelo rígido e centralizado em vigor. Todas as opçõe deste manifesto estão alinhadas com o passado quando o que precisamos é olhar para o futuro. A invocação da intermitência das energias renováveis para cercear o seu desenvolvimento levar-nos-ia pela mesma ordem de razões a condenar a energia hidrica e até a biomassa que já foi a fonte principal de energia e hoje desempenha um papel relevante. Ora acontece que um novo desenvolvimento tecnológico está a emergir: as redes inteligentes. Este novo conceito de rede usa as tecnologias de informação para gerir os fluxos eléctricos e tem em conta que os consumidores podem ser também produtores de energia e a rede pode acolher a possibilidade de múltiplas ligações para maximizar a utilização de fontes alternativas.
5. Preços e subsidiação
O Manifesto diz: "A subsidiação concedida aos produtores destas formas de energia é ainda excessiva e tem contribuído para agravar de forma injustificada os preços da energia eléctrica ao consumidor final, em particular das familias, sobre as quais a legislação faz recair o sobrecusto da Produção em Regime Especial".
É necessário ter em conta que a aposta nas energias renováveeis é uma estratégia a longo prazo e não pode ser julgada com vistas curtas. O petróleo nos anos iniciais de desenvolvimento, como o gás hoje, funcionou com base em contratos de longa duração como são os que existem hoje para as energias renováveis. Isto é: quando surge uma forma nova de energia e os investimentos são muito elevados só se atraem investidores no quadro de um contrato de longa duração em que o preço é regulado para dar estabilidade à fase embrionária de desenvolvimento da industria. Acresce a isto que as energias renováveis têm outro contributo importante: elas reduzem a exposição da economia à volatilidade do preço do petróleo. E isso só se compreende se discutirmos alternativas e fizermos comparações: se Portugal em 2010 abdicasse do uso de energias renováveis e as substituisse por gás teria de importar 1.800 milhões de metros cúbicos a mais, o que custaria cerca de 460 milhões de euros a preços de 2008.
Além disso o gás é mais poluente e a emissão suplementar de 4 milhões de toneladas de CO2 tem o seu custo. Isto significa que o uso de energias renováveis, na base destes pressupostos, permite ao país poupar cerca de 500 milhões de euros em 2010.
Recordo que em 2007 o sobrecusto das renováveis foi de 175 milhões de euros. A previsão da Agência Internacional de Energia, com base na sua estimativa de subida do preço do petróleo, é que em 2015 o custo de geração eléctrica do carvão será de 82 euros por MWh, o do gás 103 e o da energia eólica 75. Em 2030, com o encarecimento do preço do petróleo e gás, a energia eólica será ainda mais competitiva até porque com a evolução tecnológica tem-se assistido a uma redução espectacular dos custos de produção. Quer dizer: o futuro joga a favor das energias renováveis e abdicar delas nesta fase revela miopia política e económica. Para não falar da sua contribuição para a redução das emissões de CO2: em Fevereiro de 2010 o índice de emissões de CO2 em Portugal registou o seu valor mais baixo e no último ano elas estiveram 8.7% abaixo dos níveis de 2007. Há aqui um efeito da crise com o abrandamento da actividade económica mas há também seguramente o efeito das energias renováveis. Finalmente é preciso dizer que o Manifesto erra uma vez mais ao dizer que o preço da energia eólica `triplica' o valor corrente de mercado. Segundo a minha investigação, o preço da eólica em 2008 foi 1,3 vezes superior, o que é muito diferente e é preciso ter em conta que para o concurso de 1.800 megawatts a tarifa-base já foi de 73 euros por MVVh, o que está em linha com o que foi o preço médio da energia eléctrica em Portugal em 2008.
Em conclusão
Há um diferencial de custo mas ele não tem a dimensão nem as consequências que o Manifesto aponta, está longe de ser o causador único do défice tarifário como é insinuado e representa cerca de 20% desse défice. As energias renováveis não são uma panaceia que vai resolver todos os problemas energéticos do país mas podem dar uma contribuição importante. A aposta estratégica nas renováveis é um contrato com o futuro.
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