Derivas de fim de ano
Tenho ocupado o trajecto de casa para o trabalho com a leitura das Maquinações e Bons Sentimentos, onde se recolhem algumas crónicas literárias do Fernando Venâncio.
Apesar de eu ser um ignorante em literatura, o livro é mais um pretexto para conviver com a escrita viva de Venâncio. Escrita viva e viciante. Por causa dela, por causa do Venâncio, já ia sendo várias vezes atropelado, razão para se poder dizer que pode fazer mal à saúde. É assunto para a ASAE. Consta que há um projecto de Lei proposto por um obscuro deputado do PS ao Parlamento que visa proteger leitores imaturos, vedando-lhes o acesso a estas leituras ambulantes e insalubres que afectam a sua capacidade cognitiva e capacidade de orientação, levando-os a atravessarem as ruas em diagonal e fora das passadeiras, por vezes mesmo cambaleando em risos descontrolados que sugerem outros psicotrópicos já sobejamente tipificados pelas autoridades.
Literalmente na passada, fui aprendendo com o Fernando que terei de rever uma série de referências de que apenas recordo de uma ou outra mirada de passagem pelas estantes das livrarias.
José Martins Garcia, por exemplo. Por causa das Maquinações, ou dos Bons Sentimentos, não sei, tenho procurado este autor em várias livrarias, incluindo a babélica Byblos que agora escancarou as suas fauces aqui a poucos metros da minha casa. Debalde.
É bizarro que sendo para vários críticos, como Fernando Venâncio e David Mourão Ferreira um escritor tão importante, Garcia tenha desaparecido das livrarias sem deixar rasto.
Continuo à procura de Revolucionários e Querubins, agora ainda mais espicaçado por saber que a capa é do grande Nuno Amorim, personagem de referência das artes gráficas e da BD portuguesas, um dos magníficos da Visão, uma revista como infelizmente não se voltou a fazer em Portugal ( indispensáveis os posts de Geraldes Lino em Divulgando Banda Desenhada).
Procurei na net.
No Castelete Sempre encontrei nova referência a Garcia e o excerto de um texto.
A busca por Garcia levou-me também ao blog "Sons da Escrita" de José António Moreira. Ali se transcrevem os textos, alinhamentos musicais e as letras das músicas do podcast com o mesmo nome.
O formato deste podcast lembra-me o de um excelente programa de rádio feito, salvo erro, por Paulo Morais e patrocinado pelo Círculo dos Leitores, que passou há muitos anos e que combinava excelente música dos anos 60/70 com poesia.
Nunca mais esqueci a voz de João Perry dizendo "vou-me embora para Pasárgada..." porque foi a primeira vez em que me ocorreu que a poesia não era uma coisa completamente absurda e desinteressante e dita, podia ter efectivamente uma musicalidade própria.
Ora é precisamente a excessiva presença de música dos anos 60/70 que me parece o aspecto menos bom dos Sons da Escrita. Admito que esta opinião se deva a problemas do meu metabolismo, propenso a agonias e náuseas quando submetido às sonoridades dos Supertramp ou dos Barclay James Harvest.
Mesmo reconhecendo que na sua selecção se evita o recurso ao cliché fácil da musiqueta que já se não pode ouvir de tanto mastigada pelas rádios e pela pimbalhada nostálgico/lamecha dominante, penso que o programa ganharia com uma actualização musical devidamente temperada com uma ou outra pérola da época dourada.
Mas o essencial não é isto. O essencial é serem divulgados poemas e textos de escritores contemporâneos portugueses, muitos deles mal conhecidos.
Embora tenha aportado aos "Sons..." à procura de José Martins Garcia, um dos escritores que mais me surpreendeu ali encontrar foi Miguel Barbosa, que tive o privilégio de conhecer há uns anos.
Lembro-me de como na altura me causou admiração o facto de aquela pessoa afável e totalmente isenta da mais leve manifestação de pretenciosismo ser afinal pintor e amigo de grandes pintores, autor de uma obra literária complexa e diversificada e um paleontólogo amador que mantinha em casa um pequeno museu com peças de todo o mundo que trocava com uma rede de correspondentes.
Bom, já reparei que me desviei, estou-me a esticar, o post perdeu tino e nexo, os telefonemas de fim de ano à espera e a encantadora Família a ficar de trombas de impaciência.
Mas não é assim a blogosfera?
Até para o ano, então.