Corre algum alarido pela disponibilização de documentação classificada de serviços militares e diplomáticos americanos, de forma indiscriminada, no site Wikileaks, cujo principal responsável enfrenta já, à boa maneira americana, graves acusações de ordem criminal e moral, de rigor no desenrolar do guião de preparação da opinião pública para qualquer infeliz acidente que o possa vitimar dentro em breve.
Diz-se que o Wikileaks não é um site de jornalismo, já que não é feito o devido enquadramento jornalístico da informação disponibilizada, isto é, é posta ali, sem tratamento, à disposição do povo, que, mal preparado, pode dela tirar ilações "erradas".
Diz-se que se trata de “puro voyeurismo”.
Diz-se que o Wikileaks tem uma “agenda”, já que só disponibiliza informação relativa a paísses ocidentais, e não rouba informação à Coreia do Norte, à Al Qaeda, à China e à Rússia. Esta acusação é interessante porque provém, em geral, de sectores que ainda há pouco tempo se regozijaram com a divulgação indiscriminada de comunicações privadas entre cientistas da área dos estudos climáticos, sem aguardarem qualquer divulgação prévia de comunicações da Coreia do Norte ou, sequer, por aquelas havidas entre os patrocinadores do negacionismo do aquecimento global e seus divulgadores. Aqui, uma ressalva: para alguns, os cientistas que estudam as alterações climáticas são mais perigosos do que a Coreia do Norte e sendo assim, percebe-se.
Como consequência das informações já divulgadas, alguns chocam-se com a linguagem grosseira utilizada nos canais diplomáticos classificados e outros criticam o facto de se divulgarem factos e acções militares que violam as convenções internacionais, assim minando a confiança que deve existir por parte da opinião pública relativamente às acções de guerra humanitária em curso em locais tão essenciais para a defesa da nossa civilização como o Iraque e o Afeganistão.
Por outro lado, a totalidade da informação agora divulgada (entretanto parece que o site do Wikileaks tem sido alvo de constantes ataques, pelo que se tornou virtualmente impossíve aceder-lhe), é uma ínfima parcela da informação que em cada momento os estados democráticos recolhem sobre os seus cidadãos.
Na realidade, do que se trata aqui é de comunicações oficiais, e a sua disponibilização, se não é jornalismo, não deixa porém de ser um precioso auxiliar dos jornalistas, normalmente incapazes de a elas aceder.
Ao invés de criticar essa disponibilização, os jornalistas que não estão meramente preocupados em “trabalhar” a informação de uma forma subserviente para com o poder político, deveriam aproveitar o ensejo para fazerem aquilo que lhes cabe, isto é, “trabalharem” eles a informação e divulgá-la se nela encontrarem temas de interesse. Mais, o facto de a informação ser disponibilizada de uma vez, e a todo o público, permite a qualquer um avaliar a forma como os jornalistas fazem o seu trabalho de “síntese”, precisamente o contrário do que vem acontecendo em Portugal, em que escutas obtidas por processos judiciais e em segredo de justiça, são criminosamente divulgadas a um número restrito de interessados (ou que, manipulando a lei, se fazem interessados) nos processos, para delas se servirem, sem qualquer escrutínio, como de pool de informações dispersas a utilizar no momento mais conveniente.
Dos “trabalhos” de síntese que eu vi até agora, porém, por falta de sumo das comunicações ou falta de talento jornalístico, pouco se aproveita para além de coscuvilhices baratas. Como se alguém ignorasse o que os sauditas quereriam fazer ao Ahmadinejad e que, cobardolas e incapazes de o fazer, desejariam que os americanos (o infiel que na intimidade desprezam pelos seus costumes dissolutos) fizessem em seu lugar.
Mas o que interessa a forma como os embaixadores se referem a dirigentes de países onde estão colocados? Apenas os próprios (os dirigentes) se podem manifestar chocados e os embaixadores, embaraçados. A utilidade política disto é nula. No entanto, tem a utilidade de evidenciar uma questão que tem sido desprezada no debate português sobre as escutas: a questão da privacidade. Hipocritamente, como aconteceu recentemente no caso da
Edite Estrela (1), tem-se procurado legitimar uma ideia peregrina de que as figuras públicas não têm direito à privacidade. Que não há uma diferença entre o que dizemos “em público” às pessoas com quem comunicamos e aquilo que dizemos em privado, na intimidade da família ou aos nossos amigos mais chegados ou até, mesmo ao nível profissional, entre aquilo que formalmente comunicamos e a forma como falamos com os nossos colegas de trabalho. Talvez que esta distinção fique agora mais clara, à custa de uns embaixadores, americanos, para tanta pena de alguns, para quem, se fossem chineses, nunca o problema se colocaria.
Depois, há questão da selectividade das fontes.
Em Portugal, pelo menos, é bizarro ouvir criticas ao Wikileaks por causa da selectividade dos seus alvos e da “agenda” que lhes estaria subjacente, já que se não encontram disponibilizadas, até agora, comunicações da Coreia do Norte, da China, do Irão, da Rússia e da AlQaeda. Mas será que quem faz esta crítica se preocupou com este facto quando andou meses a elaborar sobre notícias baseadas no vasculhar das escutas relativas à Face Oculta e outros casos em segredo de justiça? Qual é o critério então? Primeiro, espiolhar tudo o que tenha a ver com o Sócrates, depois, a Coreia do Norte, O Irão, etc., e só depois, muito depois, quando tudo estiver cá fora, o “amigo americano”?
O último aspecto tem a ver com a divulgação de acções de guerra pouco recomendáveis por parte das forças de intervenção “humanitárias”, algo condenável por “minar” a “moral” das tropas e opinião pública. É o medo das consequências da divulgação de massacres como o de My Lai que criaram as condições psicológicas para a derrota americana no Vietname.
Divulgar estas acções é um acto muito importante.
Não porque as acções de guerra “desmascaradas” tenham, em si, algo de excessivamente anormal enquanto acções de guerra, mas precisamente porque a sua divulgação crua, e sem subterfúgios, desmonta irremediavelmente essa ficção de guerras “limpas” e, aberração das aberrações, “humanitárias”, que serve de celofane a uma cambada de criminosos para as impôr a uma opinião pública manipulada, com o auxílio de meios de comunicação coniventes. A ficção dessas guerras “humanitárias” foi produzida por mentes doentes cujas raízes intelectuais devem mais ao Captain America e outros heróis da Marvel do que aos Leo Strauss, Hayek e Hume que afivelam para épater le bourgeois.
A contribuição do Wikileaks para a divulgação de documentos que mostrem aos ignorantes, e em particular a gerações mais recentes que não foram directamente expostas à brutalidade da guerra, o que na realidade se passa, é, assim, só por si, uma contribuição de extrema valia para a defesa da democracia.
Todos podemos ter as nossas dúvidas e reservas, mas qualquer um que esteja convencido de que vale tudo menos tirar olhos para tentar implicar o Primeiro Ministro na merda de um negócio de compra e venda de uma estação de televisão (conspiração contra o estado de direito!!!), deve, por maioria de razão, compreender.
Como última nota, as lamentáveis e rasteiras objeções moralistas que rejeitam o interesse do Wikileaks porque…o seu autor foi acusado de “violação”.
OK, que se investiguem os factos. Para quem não nasceu ontem, tudo isto cheira excessivamente a esturro e parece demasiado “oportuno” para descredibilizar um homem acossado.
Mas a questão não é essa: o Arthur Koestler era um notório bêbado que exercia violência sobre mulheres. Apague-se o “Zero e o Infinito”?
(1) Disclaimer: O facto de considerar que foi alvo de um caso lapidar do grave ataque que neste momento se faz em Portugal às liberdades pessoais a coberto de uma pretensa "liberdade de imprensa", é independente do facto de não ter qualquer simpatia particular pela figura pública e política Edite Estrela