Um dia viajei de comboio para Lisboa com um engenheiro naval francês que se tinha reconvertido ao misticismo Hindu.
Num ashram algures na India tinha conhecido uma holandesa por quem se apaixonara e dirigia-se agora ao seu encontro numa comunidade em Ovar ( não há aí quem diga que o mundo já era pequeno antes da globalização?) com a alegria e a ânsia de chegar de um peregrino num caminho sagrado .
O engenheiro era mesmo um homem temperamental.
A minha incapacidade para compreender alguns dos princípios basilares do hinduísmo, que as pessoas mais indulgentes tomam por cepticismo mas que ele já bafejado por uma
sagesse milenar interpretou rapidamente como estupidez pura, pô-lo num estado de impaciência tal que eu cheguei a temer não chegar ao fim da viagem sem atingir o
satori à força de bordoada ministrada pelo vigoroso místico.
Chegados a Lisboa, e antes de nos separarmos, decidimos almoçar juntos numa tasca da baixa.
Enquanto me contava a sua vida, foi desenhando na toalha de papel, com o traço e a segurança de proporções de um grande artista e profissional um belíssimo veleiro em movimento.
Discutimos viagens, barcos, desenhos, enfim...
No fim, paguei a conta e segui-o para a rua embrenhado na conversa.
O francês, a quem o misticismo não toldara o contacto com "o real", virou-se para mim e perguntou-me "então e o barco?"
Só então compreendi.
Voltei para trás a correr e entrei no restaurante direito à mesa onde comeramos.
Impossível. A produtividade em Portugal pode ser baixa mas ainda há infelizmente gente laboriosa.
Em menos de um minuto, um diligente empregado apressara-se a levantar a mesa e a conduzir directamente para o lixo "todos os vestígios da nossa breve passagem" - parece metáfora, não é, mas... com a verdade me enganas.
Pareceu-me extraordinário que alguém possuísse capacidade de abstracção para ignorar a presença na toalha de um desenho tão maravilhoso e o tivesse assim amarfanhado, misturado com restos de comida e atirado para o caixote. A indiferença e paz de espírito dos grandes criminosos, igual à reverência com que o segurança do museu protege uma garatuja qualquer imbuída do estatuto de "arte".
Bem que eu tentei animar o meu novo amigo nos momentos até à despedida.
Para maior eficácia tentei recorrer aos ensinamentos que me prodigalizara na viagem.
Falei-lhe da transitoriedade das coisas, que no fundo estavamos todos fundidos num todo uno com o universo, nós, o desenho, o empregado... nada foi capaz de lhe tirar do rosto um rito de amargura e decepção pela perda de algo que ele sabia ter valor e me quisera oferecer num acto de total dádiva. E como eu me penitenciava e como sabia que ele tinha razão.
Para expiar o meu esquecimento, passei desde então a abandonar os desenhos que faço nas toalhas dos restaurantes. Apenas recentemente me lembrei de os utilizar no blog, e para isso, fotografo-os antes de sair.
Por vezes, já à porta, viro-me discretamente para admirar o que se tornou numa espécie de acto final dessa minha relação breve com eles, o momento em que o empregado se debruça sobre a mesa, e com um único gesto recolhe e amarfanha a toalha de papel e o seu efémero habitante.