Fiquei surpreendido com a crónica de
Faranaz Keshavjee na edição do Público do passado Domingo.
Partindo de considerações consensuais sobre a necessidade de romper com o maniqueísmo,
Faranaz Keshavjee critica as recentes declarações de
Bob Geldof sobre Angola em termos oriundos do paleolítico da análise política.
Para legitimar o seu raciocínio, acompanha os media angolanos controlados pelo governo local que comentaram o caso e parte de um conveniente erro factual.
É que Bob não chamou criminosos "aos angolanos".
Ele disse que Angola é governada por criminosos, o que é substancialmente diferente. Digamos que é totalmente diferente.
Ainda se essa acusação fosse feita aos israelitas que elegem mais ou menos democraticamente os seus governos racistas, poderia ter algum vago sentido, mas os angolanos pouco são tidos ou achados quanto a quem os domina. Quem domina em Angola é o resultado de uma impiedosa luta de clãs em que o adjectivo impiedosa não é mera metáfora de jornalismo sensacionalista.
O apoio de muita gente à expressão do Bob Geldof provém da convicção de que Portugal, graças ao 25 de Abril, fez o que havia a fazer para resolver a situação das colónias que o salazarismo deixou gangrenar e como tal, pesem embora alguns interesses económicos e os laços afectivos que prendem muitos portugueses a África, muita gente sente-se à vontade para dizer o que pensa em relação aos PALOP, sem pesos de consciência.
Contra vários sectores que clamaram contra o "abandono" do Império, ou a sua entrega à URSS, Portugal levou ao limite a tentativa de evitar a tentação neo-colonialista.
Nada de regimes de "transição", nada de cozinhados com os ex-colonos cuja consequência seria inevitavelmente o prolongar do envolvimento de Portugal na guerra.
A soberania dos novos países foi entregue aos movimentos que se bateram pelas armas contra o colonialismo português.
Ficou nas mãos deles a responsabilidade de transformarem as colónias relativamente atrasadas em países democráticos e de futuro, explorando países viáveis, ricos em matérias primas e até dotados de algumas infra-estruturas.
De outra forma, se as lideranças desses movimentos não consideravam esses Países viáveis, o que os levaria a pegar em armas e exigirem a sua independência?
Portugal não pode apagar um passado colonialista que teve certamente pesadas consequências para os angolanos e os outros, mas também não podemos deixar de constatar com profundo desapontamento que não implica qualquer espécie de saudosismo ou reavaliação das soluções encontradas, que passados trinta e cinco anos e entregues os novos países cheios de potencialidades aos seus representantes de facto, a era de de abundância que neles, livres da canga do colonialista, se anunciava, se concretizou em brutais guerras fratricidas, crimes de extrema crueldade entre camaradas e contra as populações inocentes, milhares de mortos e estropiados pela colocação indiscriminada de minas, a miséria mais terrível para a maioria das populações.
É isto, afinal, o que, para Faranaz, "durante pouco mais de trinta anos se conseguiu construir depois de muitas décadas de destruição maciça por culpa dos europeus, mormente dos portugueses".
A tal ponto que as pessoas mais familiarizadas com a realidade angolana frequentemente desvalorizam a pequena e grande corrupção que grassa a todos os níveis e condição de sobrevivência e num gesto de simpático paternalismo de matriz colonialista atribuem-na a uma característica mais pitoresca da cultura local.
Sempre em nome da liberdade e "do povo", dessas lutas resultou o açambarcamento das riquezas por minorias cuja única legitimidade reside no poder militar e policial, que se entregaram à nobre tarefa de enriquecerem da forma mais chocante, totalmente indiferentes à miséria e carências generalizadas. Esta falta de solidariedade para com a maioria da população, é alias comum, infelizmente, a muitos países do terceiro mundo, e em muitos líderes em que todos, lá, e cá depositaram excessivas esperanças.
Veja-se a tragédia do Zimbabwe, onde um ditador decrépito se agarra ao poder com todas as forças apesar de perder eleições e apesar do desastre que provocou na economia do seu País, veja-se o que se tem passado recentemente na Birmânia em que uma trupe de militares está mais preocupada em salvar a face do que acudir à população dizimada por um desastre natural.
Num texto indigente em que mistura alhos com bugalhos, Faranaz inverte o "maniqueísmo" e quer-nos convencer de que alguns dirigentes dos países do chamado Terceiro Mundo que não passam de algozes dos seus povos enquanto as suas contas em bancos estrangeiros engordam, muitas vezes à custa de dinheiros destinados a ajuda humanitária e a projectos de desenvolvimento, são "bítimas" inocentes às mãos dos "colonialistas", não resistindo mesmo a ir buscar a despropósito o exemplo do Bush a pretexto da guerra do Iraque, quando perante gente como José Eduardo dos Santos (com quem de resto os americanos até se dão bem), Robert Mugabe e outros do mesmo calibre, como a rapaziada do Sudão que não hesita em mandar tropas liquidar a sua própria população, o Bush até se arrisca a ficar bem no retrato.
Faranaz, por favor, pensa no que escreves. Não vás por aí.
O que tu defendes não são princípios democráticos, é o branqueamento de oligarquias. E isso não é "compreensível", isso não é nada de esquerda e nada tem de multiculturalismo.