Há umas semanas atrás, dois skinheads profanaram um cemitério judaico em Lisboa.
Para além disso, a polícia descobriu que se encontravam na posse de moradas de membros da comunidade judaica portuguesa.
É difícil perceber o que levará uma pessoa a invadir um cemitério para ir profanar campas de mortos. Alguns acharão uma coisa de rapaziada.
E quanto a manterem-se com fins inconfessáveis as moradas de determinadas pessoas cujo traço comum é a pertença a uma determinada comunidade ou grupo religioso? Fará sentido?
Aos olhos do grupo a que pertencem, faz, é a sua forma de fazer política.
Perceber-se-ia, numa perspectiva muito benevolente, que tivessem consigo os nomes de gente de um partido ou organização política qualquer que lhes desagradasse, gente habituada à mesma linguagem com quem mantivessem um diferendo político. Um pouco como um grupo de mafiosos disputando um território de negócio a outro gang.
Passe embora a circunstância de se ter provado recentemente a relação íntima entre a ideologia e as actividades ilícitas do que parece ser o chefe operacional dos nazis portugueses, o tal "preso político que a democracia não deveria ter", para usar uma das mais assombrosas definições do Pacheco (até hoje, porque já se viu que isto é sempre a descer), a eles, porém, não interessam em geral, "ideias" ou "posições". A eles interessa essencialmente o problema racial. Não, o sujeito é judeu, tem de ser punido, eliminado se possível. É esta a "ideologia" de que procedem todas as "acções".
Não pode ser mais claro que esta forma de pensar e de actuar é inaceitável.
Assim pensa felizmente a esmagadora maioria dos portugueses e dos europeus, com excepção, talvez, duma perturbante percentagem da população de alguns dos países de Leste, precisamente e paradoxalmente aqueles onde tem mais força a imagem da "liberdade" tal como é promovida pelo sector da política norte-americana que mais tem apostado políticamente no ataque a um pseudo "anti-semitismo europeu".
É nesta altura que se percebe de forma rude a fragilidade de certas linhas de pensamento.
Os habituais porta vozes da comunidade judaica ficaram justamente indignados com estes actos, exigiram uma tomada de posição de toda a comunidade, e com razão.
No entanto, são eles os primeiros a banalizar a palavra "anti-semitismo" ao empregá-la a torto e a direito a quem critica qualquer aspecto da política israelita sobretudo no que respeita à violência e opressão sobre os palestinianos.
Habituados a reagir num quadro político actual, esquecem-se que os nazis ainda sobrevivem, e que há uma diferença radical entre eles e a maioria dos habituais críticos de Israel.
Por um lado erigem o Holocausto em "mal absoluto" e por outro lado banalizam os seus perpretadores fundindo-os na massa heterogénea e largamente inócua dos críticos de Israel. É mais uma variante do sindroma de Pedro e o Lobo.
São duas perspectivas, duas formas radicalmente diferentes de fazer política, mas eles tentam deliberadamente associá-las.
O facto de eu chamar a atenção para estes factos, é já, na perspectiva deles, uma manifestação de anti-semitismo.
A contradição referida acima, é irresponsavelmente aprofundada pelos conservadores que se apresentam como os paladinos dos "valores" da "democracia liberal", da América e de Israel. Por um lado o Holocausto tem uma qualidade exclusiva, indiscutível e legitimadora de toda a política de Israel, por outro lado desesperam na tentativa de provar o seu contrário, ou seja, que o Holocausto que para eles, por definição, é "só um", tem "um espelho". Espelho esse de uma abrangência galopante, não se limitando já aos casos mais evidentemente aberrantes do totalitarismo de esquerda como o terror estalinista ou os killing fields, mas incluindo todas as manifestações de dissidência e violência política protagonizadas pela esquerda.
Ora esta empresa é tão evidentemente falsa e estúpida, tão cabalmente desmentida pelas circunstâncias quando somos confrontados com a realidade do ódio demencial expresso em acções concretas como as recentes profanações, que não só não consegue fazer-se entender, como prejudica, dentro da própria esquerda, uma reflexão sobre os significados e os usos da violência.
O que resulta é a interrogação: o que leva gente que vitimiza atabalhoadamente nazis actuantes, a diabolizar actos que procedem de uma prática política de natureza completamente diferente embora também fortemente antagónica?
Na realidade, não se trata já de colar estes aos primeiros, trata-se de tentar inverter a ordem.
Ora isto não é inocente e levanta preocupações sobre a deriva de alguns "conservadores" levados pelo desespero da falta de perspectivas de acesso rápido e pela via democrática ao poder. E são eles quem tem vindo a insistir desde há uns tempos para cá em que "a democracia pode ser apenas um estado transitório".