O referendo já passou, ganhou com grande vantagem relativa o Sim.
Não pode esquecer-se por muito que nos desagrade, que o seu resultado não é vinculativo.
Na prática, foi um exagero legalista.
O seu resultado apenas dá um "sinal" ao governo, apoiado nesta matéria pela maioria da Assembleia da República, incluindo a grande maioria do PS, a totalidade do PC e BE, e parte do PSD, para legislar em paz de consciência.
Um passo importante foi dado mas a história não vai acabar aqui, e o núcleo duro do Não vai estrebuchar, bloquear, boicotar, entravar de várias formas, apelando ao Cavaco, ao Tribunal Constitucional, à Europa, o costume, apesar de alguns dos seus apoiantes considerarem esta uma "questão secundária" quando "há tanta gente a morrer à fome" .
Por razões de trabalho andei afastado da blogosfera no período de discussão do referendo pela despenalização do aborto.
Também era discussão que não me interessava particularmente, encarando-a eu como um problema cuja solução consensual é há demasiadas décadas protelada contra o sentir e a prática da maioria da população portuguesa pelas jogadas de um pequeno grupo de personagens, incluindo um notório abuso de confiança política do líder do partido do governo em 1998.
Surpreendeu-me ainda que o Governo recorresse ao formalismo do referendo quando dispunha de uma maioria absoluta confortável para legislar sobre a matéria, e quando a anterior decisão de manter o pântano fora tomada por um Guterres aliviado face a um referendo que não era de todo vinculativo.
A única e duvidosa vantagem do anterior referendo foi, aliás, e da forma mais inesperada, o de reforçar a coesão nacional, dando aos ilhéus da Madeira e dos Açores a satisfação duvidosa de, por uma vez, fazer valer com a sua votação uma opção que fora minoritária no Continente.
Nesta breve radiografia, o mais intrigante não foi a votação no "não", mas o elenco de razões que levaram muitas pessoas naturalmente nos antípodas dos partidários "duros" a votarem "não" ou a absterem-se.
Convocando cada vez mais, à medida do amadurecimento progressivo de uma certa geração, a noção de "responsabilidade", o sucessivo adiar foi auxiliado pela tibieza de muitos dos porta vozes naturais da despenalização, assaltados por remorsos e problemas de consciência que os foram obrigando a demarcar-se mais dos seus putativos colegas de intenção do que dos seus adversários naturais.
A crónica de Pulido Valente no Público de 2 de Fevereiro, pensei eu, enganado, ao balizar com tanta clareza como a que é possível os contornos do que estava em jogo no Referendo, punha uma pedra na questão.
Pelo que tive oportunidade de constatar quando "regressei", foi chover no molhado.
Aceito que haja pessoas que achem "um luxo" a despenalização do aborto face a outras questões mais importantes. Sou até capaz de concordar... no entanto, como esquecer que a questão só assume esta importância de assunto a necessitar de referendo porque um grupo de partidários do Não insistem em levar a penalização até as últimas consequências, e ainda por cima votar neles?
Aceito que as pessoas queiram reagir ao fecho de serviços de saúde importantes para quem vive fora dos grandes centros urbanos, por questões de contabilidade mais mesquinha.
Mas se isso vai agravar a assistência às populações, em que é que a penalização minora o problema? Votar "não" não é precisamente "justificar" o desmantelamento dos serviços de saúde? O que conta mais? Manter uma penalização que impende sobre pessoas essencialmente inocentes, ou infligir uma derrota política passageira a um Governo que mal ou bem, mercê da normal alternância democrática acabará por ser substituído?
Aceito que alguns dos personagens da campanha do "sim" sejam extremamente irritantes, mas não é isso inevitável? O que tem isso a ver com a pergunta em questão?
Aceito que ao contrário da imagem que ficou na campanha, há também "muitos sins", inclusivamente aqueles que o "não" caricaturou como maioritários. Se há gente capaz de fazer piercings de toda a espécie, a tatuar-se, a escarificar-se, adepta da automutilação a la "Crash", porque não haverá num universo de milhões de pessoas a probabilidade pelo menos teórica de existir um número ínfimo de adeptos ou adeptas do aborto pelo aborto? Manter uma despenalização a pensar nesta ínfima probabilidade equivaleria a proibir a construção de auto estradas para evitar os choques em cadeia, as entradas em contramão ou as corridas selvagens, proibir os aviões por causa da probabilidade de ocorrência de acidentes pessoais causados pelas diferenças de pressão, ou impor recolher obrigatório porque algumas ruas são mal frequentadas à noite.
Já me confundem mais aqueles, mais sofisticados, que rejeitam o facto de o Estado "se arrogar" o direito de interferir na vida privada das pessoas..., pois o Estado não se tem arrogado o direito de punir quem abortar? Porquê então optar pela opção mais abusivamente "estatista"?
Independentemente do referendo em causa, é interessante verificar como numa votação livre sobre uma questão relativamente simples à qual não repugna particularmente responder Sim ou Não, se formam "tendências" ou "sub-tendências" de voto, se geram consensos, por vezes os mais espúrios e como evoluem os movimentos de opinião em democracia.
Exprimem talvez, a necessidade de cada um procurar formas de se individualizar e recusar a diluição na massa anónima de pessoas igualmente votantes, provavelmente com os mesmos dilemas.
Porém, o que é certo e perturbador, é que meia dúzia de ferramentas conceptuais, utilizando a linguagem "fria" das matemáticas, consegue prever através das sondagens a tendência geral dos votos, independentemente das razões mais estapafúrdias com que procuremos fundamentar o nosso Sim, e o nosso Não. E isto a propósito de quase todos os assuntos.