Falta-me a dose necessária de cinismo para compreender algumas das reacções à revolta no Egipto (daqui a trinta anos ainda os egípcios andarão a ter discussões acaloradas nos media sobre a natureza dos acontecimentos, "revolta" ou " golpe de estado"...).
Os bushistas declarados, que a pretexto de eliminar um ditador e criar um fenómeno do tipo dominó que arrastasse num maremoto democrático diversos regimes ditatorias e corruptos do Médio Oriente, uns mais, outros menos hostis a Israel, não hesitaram em estraçalhar um país para impôr um regime tutelado e minado pela corrupção e por uma guerra civil larvar entre facções islâmicas, a que chamam um "sucesso", inquietam-se agora com os potenciais desenvolvimentos de uma revolta popular que visa correr com um ditador, pela "instabilidade" que pode provocar na região.
Aparentemente, o que falha para cumprir critérios de legitimidade é que a revolta não é enquadrada pelo Ocidente, e a "teoria do Dominó" não é imposta à bomba. Afinal, as massas que só esperariam um empurrãozinho para derrubarem os seus ditadores, são constituídas por potenciais "fundamentalistas", quiçá "terroristas". Para piorar, a revolta da rua árabe contra a corrupção e a desigualdade não começou, como era esperado, na Síria, mas sim em países "amigos", como a Tunisia e o fundamental Egipto.
Ok, pode dizer-se que dos bushistas e em geral, da política externa norte americana, só um incauto se surpreenderá.
O que se está a passar nas ruas do Cairo e outras cidades, agravado pela natureza tendencialmente "fundamentalista" das massas árabes, descambará, segundo estes sofisticados prognósticos, na tomada do poder pelas facções islâmicas mais radicais, um pouco como aconteceu no Irão há cerca de trinta anos atrás (embora na altura, não tivesse lembrado a um careca que a rejeição maciça do Xá se devesse à escassez de bens alimentares derivada da crise energética e amplificada pelo aquecimento global).
Como nesta altura do campeonato, em que por cá as coisas também não estão famosas, a única coisa que nos poderia fazer aceitar alguma perda de "estabilidade" seria uma sublevação popular com certificação ISO "politicamente correcta", atributo de que esta nitidamente carece, a conclusão que é possível tirar é que seria preferível (mais "tranquilo", "estável", e "anti-fundamentalista") a manutenção do Hosni Mubarak no poder. É esta a perspectiva do "bushismo de esquerda" que nem por isso deixará de assinalar, nos momentos apropriados, as cumplicidades simbióticas entre os nossos regimes democráticos (e corruptos) com as ditaduras corruptas, mas afinal de contas, necessárias, que enxameiam o Médio Oriente, para beneficio da nossa tranquilidade, que todos reconhecemos ser assegurada pelo tranquilo fluir do ouro negro, enquanto houver deste.
Esta visão cínica da realidade, temperada por um incorrível preconceito civilizacional, é quanto a mim, insustentável, tantos são os exemplos, à esquerda e à direita, das suas consequências catastróficas, do colonialismo ao apoio às ditaduras estalinista e maoista, culminando, nos dias de hoje, com as desastrosas intervenções no Iraque e no Afeganistão.
O facto é que as massas dos países árabes, exactamente como nós, pretendem o essencial do que nós queremos, democracia, justiça social, liberdade, equidade. Um mínimo, de cada uma destas coisas. O facto de serem tendencialmente muçulmanos é um detalhe que só desculpa muito parcialmente o preconceito. A diferença essencial é que na sua esmagadora maioria vivem em condições materiais muitissimo piores do que aquelas em que nós vivemos e para além de terem de aturar os seus ditadores ostensivamente corruptos, ainda por cima têem de aturar a nossa arrogância e paternalismo imbecis, só porque, por um simples acaso, estamos do lado certo do Mediterrâneo.