Treinei esta anestesia geral como um ensaio geral da morte.
Aliás, suponho que uma das razões pelas quais enfrentei as circunstâncias que levaram à necessidade da anestesia com alguma expectativa positiva e até impaciência, foi o facto de me facultarem de forma relativamente benigna a possibilidade do teste.
Quando me levavam do quarto, já vestido com aquela túnica azul do condenado, um outro paciente, um
missionário vitima de uma bárbara agressão algures nos confins de Moçambique há cerca de um mês, que o deixou cego, encetou oportunamente uma ladainha sobre as cerimónias fúnebres e falou da luz resplandescente como não existe na Terra, que espera do "outro lado" aqueles que acreditam nela neste "
vale de lágrimas".
Nada melhor para incitar à meditação.
O ateu vacilou por momentos. Há coisas que não acontecem por acaso.
Onde estavam Dawkins, Hitchens, Harris, a
Palmira?
Não seria altura de fazer um acto de contriçãozinho? Não se perde nada e sempre é uma segurança...
Uma médica, uma senhora com o ar mais tranquilo deste mundo espetou-me qualquer coisa na veia e falou-me com voz calma, quase maternal.
A minha cama estava estacionada num corredor em torno do qual se desenvolvia uma actividade febril, fabril, assustadora nas circunstâncias, porque actividades fabris com carne à mistura lembra sempre um matadouro, em especial a um cordeiro prestes a ser intervencionado pela mão segura do cirurgião.
Entrei para o ambiente sinistro do "bloco" e vi-me rodeado por pessoas mascaradas que, parecia, aguardavam um sinal qualquer.
Eu estava muito consciente disto tudo, atento às conversas, aos gestos, aos sinais.
Esperava a todo o momento que a médica anestesista, sempre ao meu lado, pronunciasse uns passes de mágica ou executasse uns malabarismos para eu ver como reagia.
Esperava no fundo uma progressão, em pingue pongue até chegar ao "outro lado".
E é assim que se passa para o "outro lado".
Simples.
O que nos angustia é o facto de pensarmos que na morte "real" não voltamos a acordar. Que chatice, adormecemos, OK, mas cadê o regresso para contar?
Se pensarmos bem não faz exactamente diferença nenhuma.
Que consciência temos do que se passa à nossa volta quando estamos a dormir profundamente? Acordar, nessa altura, não faz falta nenhuma, torna-se quase um capricho supérfluo da natureza.
O que nos angustia é pura curiosidade, saber o que se passa a seguir mesmo que o filme seja pouco agradável.
Desta vez voltei de novo a "este" mundo estrebuchando como que à saída de um pesadelo. Fixei com algum espanto o belissimo rosto de uma jovem debruçada sobre mim.
A touca que lhe envolvia os cabelos negros tomava a forma mística de uma crisálida, oblonga como uma coifa tal qual figura de retábulo medieval.
Talvez afinal fosse o Paraíso, a pronúncia espanhola do anjo reforçava a sensação. A luz?
As dores no corpo fizeram-me cair na "real". Estava na sala de recuperação vigiado por uma atenta enfermeira, imerso numa penumbra repousante.
Na minha cabeça ficou a zoar durante umas horas o bip bip contínuo da máquina que media a tensão arterial anunciando que o meu coração batia e eu ainda estava vivo.
No Inferno não deve ser tão difícil.