É um pouco estranho que apenas agora, passados pouco mais de trinta anos, tenha surgido um livro autobiográfico, "
Conquistadores de Almas", de
Pinto de Sá (suponho que o autor anónimo do
blog com o mesmo nome), editado pela
Guerra & Paz, cujo pano de fundo é o das lutas estudantis no IST no período final da ditadura.
E é irónico que esse primeiro livro sobre uma época tão intensa seja escrito na perspectiva de um "anti-herói", militante de uma obscura organização de extrema esquerda que faz a sua descida ao Inferno, primeiro nos meandros da actividade semi-legal, depois preso e submetido a tortura pela Pide a que cede, e, cúmulo dos cúmulos, de novo a prisão depois do 25 de Abril, acusado de pertencer, desta vez, à Pide, mercê das suas confissões na prisão.
Custa a crer a quem vá acompanhando o que se tem escrito na imprensa e publicado sob a forma de estudos ao longo das últimas décadas sobre a contestação estudantil ao regime salazarista/caetanista, que provavelmente uma das lutas mais radicais, violentas e apoiadas em número significativo pelos estudantes tenha sido a que se travou no Instituto Superior Técnico nesses anos finais da ditadura, dado o esquecimento a que foi votada.
Começou de forma intermitente durante o ano de 1972, agudizou-se em Outubro desse ano com o assassinato do estudante Ribeiro Santos pela PIDE e acabou por assumir o carácter de confronto contínuo que culminou numa greve subsequente à prisão de vários estudantes entre eles o presidente da associação e o fecho da Associação de Estudantes.
Essa greve durou um inteiro ano lectivo sendo confirmada em várias Reuniões Gerais de Alunos convocadas pelo director de então, Sales Luís, apelando à "maioria silenciosa" e que efectivamente tiveram milhares de participantes, passou pela expulsão de setenta activistas estudantis no início do ano lectivo de 73/74 , pelo cerco do técnico pela polícia de choque e pela expulsão diária de mais estudantes que todos os dias se destacassem minimamente em acções de contestação, até ao 25 de Abril.
Julgo que não há memória de uma coisa assim.
Nem nas épocas míticas das crises de 62, nem na crise de 69 em Coimbra.
Talvez que as coisas, mais detalhe, menos detalhe, não pudessem passar-se de outra maneira, dado o intolerável clima de atraso cultural que se vivia num Portugal envolvido numa guerra estúpida, eficaz na censura mas, graças à revolução nas comunicações, incapaz já de bloquear as brechas por onde se disseminava uma exasperação incontrolável em certas camadas da população, em particular os jovens urbanos.
Só que não há comparação possível em termos de impacto entre o que se passou no Técnico e nas outras Faculdades do resto do País.
Realço que não se tratou de UMA assembleia, UM momento especial e simbólico, um período de duas semanas.
Não, foi um período contínuo de agitação .
Se dessa luta não se fala hoje em dia, deve-se a vários motivos:
- a maioria dos principais protagonistas, passado o período também conturbado pós 25 de Abril, que se prolongou até 1976, desligou-se da política, vacinado por um período violento e prolongado de entrega total e procurou outras actividades, considerando que já tinha feito "o que havia a fazer".
- a maioria dos principais protagonistas nunca se identificou com nenhum partido político nem se reconverteu publicamente a outros partidos do espectro parlamentar, pelo menos em lugar de destaque.
- alguns dos protagonistas que foram ultrapassados ao longo desse processo ou perderam o controle pelos acontecimentos, nunca puderam assumir até por despeito a importância que este assumiu. É o caso evidente de testemunhas ligadas directa ou indirectamente ao PC ou mesmo a outros grupos de extrema esquerda, demasiado radicais para apreciarem o significado dessas movimentações estudantis.
- para os militantes de orientações associativas semelhantes que se "reconverteram" a outras ideologias, em particular o ultra-liberalismo de extrema direita e atingiram postos de destaque quer na política quer nos media, essa luta hoje esquecida não constitui uma mais valia, por razões óbvias do seu actual radicalismo político espelho do que assumiram na juventude.
- o marketing politico espalhafatoso do MRPP teve os seus frutos, e a espectacular reconversão de alguns dos seus militantes mais destacados, oriundos sobretudo de Direito, ao main stream político com a referência inevitável de um orador medíocre e histérico como era da praxe, chamado Barroso, ter alcançado o notável posto de Presidente da Comissão Europeia, lançou um véu sobre tudo o resto, apesar de o MRPP não ter tido qualquer papel nas lutas do Técnico como organização, limitando-se alguns dos seus simpatizantes a participar nelas .